{ hoje é o dia }




"The body manifests the stigmata of past experience and also gives rise to desires, failings, and errors… . 
The body is the inscribed surface of ideas… the locus of a dissociated Self… 
and a volume in perpetual disintegration."
[ Michel Foucault ]


um dia...

"um dia vais olhar para trás e tudo vai fazer sentido", disse-me enquanto me estendia um copo de vinho licoroso, com gelo, como eu gosto. sorri tenuemente e acenei a cabeça em concordância, era mentira, ambas sabíamos. às vezes os amigos mentem, suaves e leves mentiras, tal como o vinho que agora saboreava, apenas para adoçar a boca e animar o espírito. por mais que se olhe para trás, o tempo desperdiçado nunca faz sentido, independentemente dos ensinamentos, das lições de moral, dos momentos fugazes... a perda de tempo nunca faz sentido, seja ela de um minuto, um dia, um mês, um ano ou uma vida.
encadeei mais uma porção de frases pré-feitas e clichés vazios, num discurso de esperança bizarro e de crença num futuro que de tão irreconhecível nem sequer poderá ser considerado utopia.
enchi novamente o copo, na esperança de me encontrar quando o mesmo ficasse vazio. há muito tempo que tinha deixado de conviver com esta desconhecida dentro de mim, que ignorei insistentemente, anulada pelo conflito de personalidades fortes e trajetos mal sinalizados. Conheço cada vez melhor esta anónima, que luta para se afirmar, grita perante o perigo e, tal como eu, não se assusta facilmente.
"um dia vou ser feliz", disse em jeito de piada para desviar o tema da conversa. "hoje é o dia", respondeu rindo também, os vírus linguísticos têm sempre a sua graça. partilhamos uma gargalhada deliciosamente ruídosa, era verdade, ambas sabíamos. a felicidade está nos pequenos momentos e nas pessoas que nos conhecem, mesmo quando nos sentimos uma estranha.



"i am my remembering self, and the experiencing self, who does my living, is like a stranger to me."
[ Daniel Kahneman ]